O sorriso do Piratini
A história da chefe da recepção foi escolhida para abrir a publicação de perfis em celebração ao centenário do palácio
O Palácio Piratini é marcante em duas fases bem distintas da vida de Ângela Chaves dos Santos. Nos anos 1960, a menina acompanhava a entrega das roupas que a mãe lavava para famílias que moravam próximo à sede do governo. “Ela ia com uma trouxona e eu, com uma trouxinha”, recorda. A imponente construção era observada à distância pela garota nascida em 1956 na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. E bem depois, a partir de 1º de janeiro de 2007, sua história se mistura com a do agora centenário Piratini, quando começou a trabalhar na recepção do palácio.
Em março de 2019, ela se afastou da atividade devido à pandemia. Depois de quase um ano distante, retornou para a entrevista que deu origem a este perfil, e a mulher conhecida como “o sorriso do Palácio” se produziu para a ocasião: suas roupas estavam combinando em tons de rosa e verde. A sensação de alegria que se formou ao redor dela era grande, tamanha a empolgação dos funcionários que sentiam sua falta e vieram saudá-la. Ângela disse que sua saudade estava “do tamanho do palácio para mais”.
Sentada no Salão Negrinho do Pastoreio, Ângela falou sobre a sua vida. Nasceu em Porto Alegre, em 1956, na Santa Casa de Misericórdia. Foi criada no bairro Vila Jardim, no beco Viela da Alegria. “Naquele beco, tinham alegrias, mas também algumas tristezas”, relembra. Sua mãe era lavadeira, faxineira e cozinheira. Se naquela época o encantamento pelo Piratini era à distância, quando acompanhava a mãe em suas andanças de trabalho, há 14 anos o deslumbramento com o prédio se intensificou, desde que Ângela se tornou uma das figuras mais conhecidas do palácio.
Antes de chegar à sede do governo, Ângela passou por outros empregos. Vendeu roupas, desfilou como modelo e trabalhou na recepção de um hotel no município de Canela. Nesse trabalho, ganhou a oportunidade de disputar o título de rainha do Carnaval de Porto Alegre.
A escola de samba que dá a cadência do coração de Ângela é a Bambas da Orgia, mas foi com a rival Imperadores do Samba que se tornou rainha. Teve que aprender a história da agremiação, se preparou para o concurso e quase desistiu de um noivado para concorrer. “Eu tinha ficado noiva há poucos dias quando recebi o convite para o concurso, mas meu bem não gostou da ideia”, lembra. O rapaz disse que sair com ele nos festejos do Carnaval era uma coisa, mas participar do concurso era outra que não queria. “Tivemos dois minutos para resolver a questão: Carnaval ou noivado? Escolhi o Carnaval.”
Apesar da briga, os dois permaneceram juntos e seguem casados até hoje. E naquela época, depois que se acertaram, ele escreveu um bilhete: “Tenho certeza que sairá vitoriosa”. Estava certo. Em 1983, Ângela foi eleita rainha do Carnaval de Porto Alegre.
“Gosto de gente”
Depois da experiência no hotel e de sua coroação no Carnaval, ela trabalhou cinco anos no Clube do Professor Gaúcho e 14 na Secretaria Estadual de Educação. Sua ida para o Piratini ocorreu por indicação. Ela foi informada por um telefonema que deveria se apresentar no setor de Recursos Humanos do palácio a fim de tratar da sua admissão para uma vaga de recepcionista. Surpresa, perguntou se realmente se tratava dela. E era. Então ela organizou os documentos e iniciou o trabalho.
Ângela é uma pessoa carismática e com grande facilidade de comunicação. Gosta de pessoas, por isso seu amor pela função que desempenha. A todos que cruzam pela porta, recebe com gentileza. Não é à toa o seu lugar favorito nos mais de 10 mil metros quadrados do Piratini: “Se eu vou escolher um local do palácio que eu mais gosto, é o meu cantinho de trabalho, a recepção. Meu balcãozinho de trabalho”.
A chefe da recepção foi treinada e instruída por outra figura conhecida do palácio: Aristides Germani Filho, chefe do Cerimonial. Ele a ensinou sobre a história da sede do Executivo e como se portar e ser cerimonialista em um espaço político. “Nossa relação é tranquila e respeitosa. Não seria inteligente da minha parte não aprender com ele todas as dicas e informações que ele puder repassar. É um presente dispor do seu conhecimento”, afirma. “Seu Aristides é uma escola, e ele divide o conhecimento que tem. É exigente, mas também uma pessoa que você pode contar. É generoso e exigente.”
Depois de ser treinada por Aristides, Ângela assumiu a capacitação dos estagiários que passaram a integrar a recepção. Por serem estudantes, a rotatividade é grande. “Dou o treinamento da visita guiada e cada um passa a fazer a apresentação com suas palavras”, observa.
Ângela resume seu trabalho e seu amor pela recepção de forma simples: “Gosto de gente. De gente que sorri, de gente que não sorri, de gente que incomoda, de gente que é chata”.
Roupas combinadas com eventos
Outra característica marcante de Ângela é o estilo. As roupas e acessórios demonstram sua personalidade e o orgulho das raízes. “A gente cresce no Rio Grande do Sul, no Brasil, com outra orientação, digamos assim, que reflete até na questão das vestes. Nós, da etnia afrodescendente – ou negra, que eu prefiro –, custamos muito a nos posicionar e ter um pouco de coragem”, reflete.
Ângela usa turbantes, vestidos e acessórios que remetem à africanidade. Por vezes, causam estranhamento, mas isso não a afeta, pelo contrário: utiliza a maneira de se vestir como uma forma de expressão. “Quando sou informada que o embaixador de determinado país estará no palácio, busco combinar minhas roupas com as cores daquele país. Tenho liberação da chefia e também recebo instruções de como precisam que eu me vista para homenagear o país ou a situação”, conta. O visual da recepcionista passa, de forma fiel e marcante, o orgulho que ela tem de ser mulher, negra e gaúcha.
A representatividade e o orgulho das origens são fortes em Ângela. Ela é a primeira mulher negra a trabalhar na recepção do Piratini. Para ilustrar a importância dessa conquista, conta um episódio envolvendo o garçom João. Um dia ele a chamou para o lado e disse que estava muito feliz. Ângela perguntou por que, e ele respondeu que chegou à “sua Restinga” e deu um grito: “Gente, tem uma pessoa que nem nós na entrada do palácio”. E ela respondeu: “A gente pode estar em qualquer lugar. Claro, precisa haver oportunidade e o querer, e precisa haver postura de parte da gente”.
A representatividade também a colocou em situações complicadas. Sem usar termos como racismo ou preconceito, lembrou de duas situações: uma colega de trabalho que questionava suas vestes e um grupo proveniente do interior que, ao ser recepcionado por Ângela, questionou se ela realmente trabalhava na sede do governo.
Um caso que a marcou negativamente aconteceu durante visitações ao Piratini. Duas escolas chegaram ao mesmo tempo, uma de bairro nobre, com horário marcado, e uma escola de periferia. Ângela estava vestida em homenagem à África subsaariana, e a professora da escola de bairro mais abastado, já na primeira interação, perguntou “que fantasia é essa?”. A professora não queria “misturar” os alunos dela com o que ela chamou de “essa gente”. A guia afirmou: “Mas essa gente sou eu”.
Durante o passeio com as turmas no Salão Alberto Pasqualini, onde se encontram os murais de Aldo Locatelli, ao chegar à pintura que ilustra a formação do Rio Grande do Sul, Ângela encontrou uma resposta para a professora. Perguntou quem tinha identidade e afirmou que todos compartilhavam a mesma nacionalidade: brasileira. Então começou a cantar Sarará Crioulo, considerada um dos símbolos do orgulho negro com as crianças de ambas as escolas, especialmente o trecho que diz “todo brasileiro tem”. As crianças se divertiram, mas a professora não. A chefe da recepção contou que, ao final da visitação, voltou a conversar com a professora e afirmou que, como formadora de opinião, ela não poderia incutir esse pensamentos nas crianças.
Ângela admite que a oferta de trabalhar no palácio trouxe uma grande responsabilidade. “No começo, fiquei muito assustada com o ambiente, com todas as situações. Algumas vezes saí do expediente e fui para casa chorando, porque tinha que buscar uma forma de ultrapassar aqueles primeiros empecilhos ou quando me perguntavam o que eu fazia aqui”, recorda. Mesmo diante dessas adversidades, continuou e se mantém firme na missão.
A chefe da recepção afirma que o palácio já faz parte dela. “Assim como eu faço parte da minha família, da minha casa, do meu jardim, das minhas plantinhas”, compara. Nesses 14 anos, esteve presente em diversas celebrações, como a comemoração dos 98 anos do Palácio Piratini, que reuniu diversos estudantes de escolas públicas do Estado.
Estar perto das crianças, perceber a reação de espanto e admiração delas ao entrar no Piratini, a emociona: “Os eventos que me marcam mais, e marcarão mais se aqui estiver por mais algum tempo, são todos aqueles que envolvem as comunidades, o povo lá da ponta”. Ao receber as pessoas na casa do governo gaúcho em grandes eventos, faz com que os visitantes se apropriem do palácio, façam parte dele, afinal, o Piratini é a casa de todos os gaúchos. “Sempre digo: vocês poderão estar aqui no meu lugar”, conta.
E é inevitável lembrar de quando colocou o pé pela primeira vez na escada do Piratini. Na ocasião, Ângela recordou da sua vida, da infância difícil, das roupas lavadas que entregava em casas próximas ao palácio, mas, principalmente, do que sua mãe dizia: “Vocês podem se tornar as pessoas que quiserem, e estarem onde quiserem, vai depender de vocês”. Ângela diz que abraçou a oportunidade de estar dentro do palácio, e conta que a sensação de estar nele é única.
Texto: Stéfani Fontanive
Edição: Vitor Necchi/Secom